sábado, 19 de novembro de 2011

As “Delinqueleis”

A história das permissões e proibições que regulam as relações humanas nas comunidades do mesmo nome é extensa, complexa e escura. Houve um grande período primitivo em que era escrita, não em papiros ou lâminas metálicas, mas sim com a tatuagem ou com a mutilação nos corpos. Esse registro da lei, correlacionando-se com as vozes que consoavam nas práticas de convivência, deu-lhe nomes ao que no corpo eram marcas. A marca corporal era a memória do pertencimento a um território que por sua vez era o âmbito que dava nome a uma população e a cada um de seus membros. Essa memória era consubstancial com a recordação inadvertida de uma dívida. Dívida do exemplar em questão com a terra que o engendrou, dado que a mentalidade primitiva não correlacionava o coito com a gravidez, senão que atribuía à gravidez a queda da chuva sobre o corpo materno, semelhante aos cultivos. Ao que parece, essa dívida era transformada em um compromisso com o totem da tribo (ao qual a mitologia lhe atribuía o poder de criar e de proibir dentro dos limites dessa identidade territorial) e com o intercâmbio desigual que sempre implicava a obtenção de uma esposa, das mãos do pai-sogro. Mas, qualquer que seja a superposição de sentidos que conduz a afirmação de cada indivíduo, este era portador de uma dívida. O importante a destacar é que sob sua forma primitiva e territorial a divida era finita; ou seja, era pagável. A importância da modalidade a ser paga dependia de uma desigualdade de valor que supostamente tinha a transação realizada (uma esposa em troca de bens, alianças, etc.), que era sempre regateada e dissimulada na operação de troca com um rapto figurado.
No processo histórico de submissão das formações territoriais de vida à conquista por parte dos grandes impérios bárbaros, a voz impositiva já não copiava uma escrita sobre os corpos, ela era exclusiva do déspota que era humano e divino e que ditava sua lei. A partir dessa condição, os escribas, nobres e burocratas do estado imperial eram aqueles que talhavam em pedras ou a escreviam em papiros. O conteúdo da lei era amplo e heterogêneo, mas seu objetivo central consistia em estar dirigida ao povo para recordar-lhe que havia sido engendrado pelo Deus-imperador e que lhe devia tudo, desde o significado das palavras até a vida e a liberdade. Durante muitos séculos essa lei era impagável, posto que somente se pagava com a vida. Posteriormente, o processo histórico determinou a separação da Igreja e do Estado. A máxima instância doadora de tudo, divina e ultra terrena, “ fonte de toda razão e justiça era conferida à igreja e esta era encarregada de convalidar seus aspectos terrenos, estatais ao César grego ou romano ou posteriormente, ao monarca absoluto. É por isso que os primeiros códigos de Direito do ocidente foram as Tábuas da lei e depois, o Torá. Há que se recordar que o déspota se dulcificou, mudou-se para as alturas e que a dívida que se tinha por sua criação no paraíso se duplicou e tornou-se impagável por causa do assassinato do filho que supostamente foi enviado para nos salvar. Esse processo se repete em todas as formações sociais antigas, clássicas, medievais, da reforma e da contra-reforma, livros de leis sagrados( recordando que o primeiro Direito formal foi o canônico ) e seus códigos terrenos, assim como na modernidade e na contemporaneidade, em que cada ramo do Direito tem seus conjuntos de leis e todos se subordinam a leis maiores que são as Cartas Magnas ou Constituições Nacionais.
Gregório Baremblit

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Os sofrimentos atuais: seu diagnóstico e sua cura

O panorama dos sofrimentos ou transtornos chamados “psíquicos” ou mentais experimentou, nos últimos vinte anos, uma transformação muito intensa e complexa. Não só mudaram os conjuntos de sintomas que anteriormente configuravam um quadro mais ou menos identificável como “diagnóstico” X ou Y, mas também se nota que esses quadros se somam e se mesclam entre si incessantemente, e aparecem outros quadros até então desconhecidos; e, o curso, a duração, a gravidade dos sintomas tampouco é igual ao que há algumas décadas se considerava típico e inamovível para as “enfermidades” clássicas ou, geralmente consideradas como tais, pelos especialistas. Tudo faz pensar que essas transformações da patologia são coerentes com as peculiaridades da vida apresentadas nos grandes conglomerados humanos, nos últimos tempos. Os signos e sintomas das “afecções” são de aparição brusca e espetacular, podem desaparecer por si mesmos, ou em virtude de algumas medidas inteligentes tomadas pelos afetados, agravam-se rapidamente e entram em crises severas que exigem tratamentos importantes ou se complicam com outras que, aparentemente, são da área de outra especialidade e que devem ser tratadas por ela. Sem querer estabelecer conexões diretas, não se pode deixar de reconhecer que a existência contemporânea, com sua rapidez, sua variabilidade, seu alto nível de exigência, seu grau de insegurança, a multiplicação de ofertas para o consumo, as mudanças e readaptações constantes, os traumas de todos os tipos perseguindo e golpeando continuamente...superam as capacidades de antecipação e de recuperação ativa dos indivíduos, das famílias, dos grupos, das organizações, movimentos,etc.
Esse panorama mostra, com uma clareza espantosa, o que já se sabia desde muito tempo, a saber: que não existe transtorno nem sofrimento, seja em qualquer campo no qual se manifestem, predominantemente, seus signos e sintomas (“psíquicos” ou “subjetivos”, “somáticos ou corporais”, “ sociais ou de comportamento”, etc.) que não devam ser investigados por operadores com uma formação e uma cultura muito amplos e/ou por equipes multidisciplinares e tratados da maneira correspondente. Mais ainda: é bastante freqüente que o mal-estar de que se trata, seja solucionado com poucas mudanças no estilo de vida, ou seja, de costumes, de alimentação, higiene, sonho, lugar de residência, relações sentimentais, familiares, de trabalho, descanso, diversão, esporte, sociabilidade, afiliação e militância em alguma causa nobre, etc.
Mas é claro que cada uma dessas mudanças, aparentemente simples, não são nada fáceis de realizar para a enorme maioria das pessoas que são obrigadas a enfrentar esta vida cruel. Boa parte das mesmas requerem grandes decisões e ações coletivas que parecem estar muito longe do que costumamos entender como “tratamentos”. Não obstante é preciso que se tenha certeza total de que cada uma dessas áreas e atividades são sempre com-causas, ou seja, causas conjuntas, de sofrimentos e transtornos que se apresentam como “ problemas de saúde” física ou mental e que podem “curar-se” tomando os conjuntos de medidas combinados e adequados a respeito.

Por outro lado, é fundamental aprender a desconfiar e a não se entregar indiscriminadamente a qualquer tratamento dos chamados “alternativos” que provém de uma cultura ou de uma época que não é a contemporânea. Entre eles há alguns que invocam descaradamente supostos saberes e procedimentos mágicos ou supersticiosos. A força da crença, que ninguém ignora, pode até produzir efeitos de alívio circunstanciais, mas os mesmos não fazem senão retardar o diagnóstico amplo e correto ao que nos referíamos, causando o agravamento, a complicação ou a irreversibilidades do transtorno em questão. Como dizia um experimentado professor: “ Por paradoxal que pareça, nada mata mais que os milagres”.